Como observar a relação do homem com a tecnologia pode nos ajudar a compreender os desafios da era digital

*Sílvia Piva

Em um de nossos últimos textos, tratamos sobre a evolução da linguagem e da comunicação humana. Em um exercício de analisar essas recorrências, é possível notar algo muito importante: cada era comunicacional foi marcada por grandes transformações sociais.

A cada grande mudança de linguagem, é possível perceber que esses novos cenários também provocaram mudanças profundas no pensamento filosófico da sociedade, pois, inevitavelmente, tivemos e continuamos tendo:

– novos fenômenos inexplicáveis pelos paradigmas antigos;
– novos pensadores fora do status quo que inundam a sociedade com novas ideias;
– novo público com demandas de novos pensamentos;
– inovações que provocam consequências positivas, negativas e, muitas vezes, inusitadas.

Quem somos nós?

Mudamos a partir de novas possibilidades tecnológicas disponíveis e das configurações de comunicação, e a tecnologia é a forma natural do ser humano estar no mundo.

É inevitável perceber que a era digital, que se inicia com a popularização da internet na década de 90, inicia uma era de profundas mudanças nas formas de pensar e agir do ser humano. A internet móvel, em meados dos anos 2000, traz outra significativa mudança, causando uma grande aceleração na velocidade de transmissão das informações. 

Não percebemos, porém, o quanto todas essas mudanças estão totalmente incorporadas ao nosso cotidiano — e estão sempre acompanhadas de ferramentas e técnicas. Isso porque dependemos das tecnologias para sobreviver.

Quando perguntam se você gosta e se dá bem com tecnologias, o que você responde? Supondo que tenha dito que não lida bem ou que não se importa com ela, eu lhe provoco: de quais tecnologias você não gosta? 

Se você pensou em computadores, smartphones, redes sociais, planilhas de excel ou apps diversos, tudo bem. É a associação mais direta que fazemos, devido ao nosso contexto. Mas é importante marcar aqui que tecnologia não é só isso. Desde aquilo que você veste até o que você come, toda sua vida está permeada de tecnologia. 

Um exemplo? Vamos lá:

Fique fora de sua casa num dia frio sem roupas adequadas; ande por quilômetros sem calçados; passe dias sem energia elétrica ou, ainda, fique sem computador ou celular para resolver suas questões de trabalho.

Viu só? Não há muita escolha. Somos tecnodependentes.

Tecnologias não são neutras

Existe um debate acadêmico acirrado a respeito da neutralidade ou não das tecnologias. Os que defendem que tecnologias são neutras indicam que, enquanto coisas, a finalidade positiva ou negativa é trazida pela forma do seu uso e pelo comportamento humano. Logo, uma faca, ao mesmo tempo que tem sua utilidade para cortar um alimento, também pode ferir ou matar. Assim, dentro dessa ideia, o ser humano é quem pratica a conduta e, portanto, dá ao uso da ferramenta algo positivo ou negativo.

A tecnologia, enquanto objeto, pode  ser neutra de fato. Mas olhar desta forma indica que estamos dissociando a tecnologia da nossa cultura, o que sabemos que não é real. Se somos tecnodependentes, temos que assumir que a tecnologia, apesar de externa, nos compõe.

Temos percebido, cada vez mais, que não somos tão livres assim para fazer uso das tecnologias. Enquanto outras espécies animais têm limites ecológicos, nós temos limites tecnoecológicos. Quando criamos alguma tecnologia, na verdade, estamos superando uma barreira tecnoecológica, pois aquilo que não poderia ser feito antes passa a ser possível.

O homem, por um tempo, não podia voar. Mas ele — neste caso, Santos Dumont e outros que ensaiaram voo antes dele — criou o avião. A partir de então, o homem superou uma barreira ecológica fazendo uso da tecnologia para poder voar.

A partir disso, a nossa cultura expande seus limites e altera a conjuntura cultural, pois se pode viver além do que se podia antes. Nossa cultura pode, portanto, ser concebida como uma tecnocultura, que vive em um ambiente tecnoecológico, com barreiras que nos fazem estabelecer relações a partir da quebra sistemática desses limites.

Quem promove a mudança, portanto, são pessoas de carne e osso e não as tecnologias. Mas essas pessoas só poderão propor essas transformações e obter seus resultados por causa das novas tecnologias que as viabilizam.

O conceito da tecnoespécie é chave para compreensão do século XXI.

Muitos dirão que, então, agora somos tecno. Na verdade, sempre fomos tecno, mas agora essa percepção está mais evidente. E não existe nada mais alterador da cultura do que a chegada de tecnologias cognitivas, que abrem uma nova era da nossa civilização. Elas influenciam na forma do conhecimento humano, mudam seu comportamento, sua forma de pensar e agir, estão se acoplando ao nosso modo de vida de forma indissociável. Vivemos um estado de hibridismo onde não há mais apenas uma interface homem-máquina. Há uma simbiose.

Já somos seres híbridos. Que não sejamos analfabytes.

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*Movida pela conexão de saberes e pela inquietude, Silvia Piva é advogada, professora e fundadora da Nau d’Dês. É Doutora e Mestra em Direito pela PUC-SP e integra os times de pesquisadores da PUC-SP, FGV-SP e Instituto Legal Grounds.