Uma reflexão sobre as inovações tecnológicas e os aprendizados que deixamos de lado

Sílvia Piva*

Recentemente, fui confrontada por uma história que me fez refletir profundamente sobre nossa dependência das tecnologias e o valor dos conhecimentos ancestrais: quatro crianças indígenas, com idades entre 11 meses e 13 anos, sobreviveram à queda de um avião na floresta amazônica na Colômbia, perdendo-se por 40 dias antes de serem encontradas.

Crianças indígenas caminham próximo a uma floresta na Colômbia.
Foto de LIVESTART STIVEN na Unsplash

A sobrevivência das crianças desafiou todas as probabilidades e, ao saber que suas vidas foram salvas graças aos conhecimentos ancestrais da menina mais velha, não pude deixar de refletir sobre o quão vulneráveis muitos de nós estaríamos em circunstâncias semelhantes.

Não é novidade que vivemos na era da tecnodependência. Dependemos de uma infinidade de tecnologias, até mesmo daquelas que, em algum momento, já foram consideradas novas, como roupas, remédios, casas, geladeiras e agora smartphones. Como tecnoespécie, há algo profundamente desconcertante em reconhecer nossa desconexão atual com qualquer tipo de saber ancestral, inclusive aqueles invisibilizados pela força civilizatória. Mas esses saberes, em algum momento da evolução dos sapiens, foram cruciais para nossa sobrevivência — e refletir sobre isso revela a ilusão de liberdade da nossa existência, fortemente aprisionada em nossa bolha civilizacional.

Como nos tornamos tão dependentes de tecnologias, de modo que a simples ideia de viver sem elas nos parece quase impossível? Por que estamos tão aprisionados nas teias da inovação que, muitas vezes, seguimos cegamente as instruções de um aplicativo, mesmo quando intuitivamente sabemos que o caminho para o qual ele nos leva está errado?

Ao mesmo tempo, é igualmente intrigante ponderar como a coragem, a criatividade e a resiliência das crianças colombianas, aliadas ao conhecimento ancestral, desafiaram essa tecnodependência. Sem GPS ou mesmo uma bússola, elas não tinham a tecnologia para guiá-las ou ajudá-las. Ainda assim a natureza, selvagem e imprevisível, não foi um local desconhecido a ser temido: foi um ambiente no qual seus saberes e habilidades puderam ser utilizados para sobreviver.

Para além da tecnodependência

Esse evento me fez refletir não só sobre a nossa dependência da tecnologia, mas também sobre os perigos da inovação desenfreada, sem qualquer tipo de reflexão crítica. Villem Flusser, ao propor um ponto de vista particular sobre a história da produção em quatro fases distintas (mãos, utensílios, máquinas e robôs), nos permitiu observar não apenas a evolução da tecnologia, mas também as mudanças fundamentais na existência humana trazidas por elas.

No início, as mãos estavam em contato direto com a natureza: a manipulação e transformação direta do ambiente natural pelas mãos humanas eram a norma. Na visão de Flusser, esse era um estado em que o ser humano se sentia à vontade no meio em que vivia.

A primeira revolução industrial marcou a transição das mãos para os utensílios. Concebidas como extensões das mãos, essas ferramentas trouxeram uma nova forma de existência humana: cercado por elas, o homem tinha seu primeiro contato com uma uma cultura artificial que representava a primeira forma de alienação do homem em relação à natureza.

Essa perspectiva é importante quando consideramos o nosso próprio tempo e a nossa relação com a tecnologia. Estamos agora na quarta fase da produção, a era dos robôs, onde novamente vemos uma alteração significativa da existência humana. Em muitos aspectos, a situação é semelhante à era das máquinas, com os humanos sendo substituídos por máquinas mais eficientes.

A reflexão sobre a sobrevivência das crianças na selva colombiana e a nossa tecnodependência contemporânea torna-se ainda mais pertinente à luz da perspectiva de Flusser. Enquanto avançamos cada vez mais em direção à era dos robôs, precisamos nos perguntar se estamos nos alienando ainda mais de nossa natureza ancestral e o que isso pode significar para a nossa sobrevivência e existência.

A mesma lógica deve ser aplicada à nossa relação com a inteligência artificial e, por isso, proponho a reflexão:

  • É certo que a IA pode nos ajudar a resolver problemas, mas devemos entregar todos os nossos problemas a ela?
  • Entre as espumas e bolhas da inovação, estamos permitindo que nossos saberes e habilidades inatas ou adquiridas ao longo da vida atrofiem?
  • Estamos tão acostumados a seguir as instruções do aplicativo de rotas mais rápidas e fáceis que perdemos nossa capacidade inata de navegação?
  • Estamos, agora, entrando de cabeça numa nova fase de perda da nossa autonomia e da habilidade criativa?
  • E, mais preocupante ainda, estamos permitindo que a tecnologia determine nossas escolhas? 

Nossas vidas não devem ser limitadas apenas aos avanços da tecnologia. As inovações, apesar de nos salvarem em muitas situações, também nos deterioraram. Imaginem a preguiça “do pensar” após alguns anos de ChatGPT…  Então, onde está a medida?

Parece que uma possibilidade é pensar sobre o que é pensar. Precisamos questionar por que usamos algo e por que não usamos. Hoje sabemos que a faca é uma ferramenta que facilita nosso dia a dia na cozinha, mas também entendemos que seu uso indevido pode ferir e matar. Entendemos essa ferramenta, seu contexto adequado de uso e, portanto, lidamos com ela de maneira consciente — e é com esse olhar crítico que precisamos olhar para a nossa relação com a tecnologia.

Este é um convite para a reflexão. E se a história dessas quatro crianças na selva colombiana nos ensinou algo é que, apesar da nossa sobrevivência preponderantemente depender de tecnologias, manter os saberes da natureza e de onde viemos também pode nos salvar.

*Movida pela conexão de saberes e pela inquietude, Silvia Piva é advogada, professora e fundadora da Nau d’Dês. É Doutora e Mestra em Direito pela PUC-SP e integra os times de pesquisadores da PUC-SP, FGV-SP e Instituto Legal Grounds.

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