Como a história da comunicação humana pode ajudar a compreender e enfrentar os desafios da era digital no Direito e na sociedade

*Sílvia Piva

A comunicação é um marco histórico que revolucionou a história humana, mas quando pensamos sobre a evolução da humanidade e suas tecnologias, costumamos olhar para uma série de eventos, como a discussão bastante difundida sobre Revolução Agrária vs. Industrial vs. Digital. No entanto, quando vamos um pouco mais longe e voltamos ainda mais no tempo, é possível perceber o papel fundamental que a evolução da linguagem humana tem nesse processo.

A linguagem foi a tecnologia número um do homo sapiens e impulsionou seu progresso em relação às demais espécies, como afirma a pesquisadora e professora Lúcia Santaella:

“A tecnologia nos constitui, é inseparável de nós, de nossa cognição. Sendo assim, a tecnologia condiciona o nosso modo de conhecer e, portanto, a nossa educação. Quando conseguiu pôr-se de pé, o novo ser humano (agora bípede) deu ao seu cérebro as condições de crescer, trazendo, como consequência, o incremento também de sua inteligência. Foi a partir daí que conseguiu desenvolver a sua primeira grande tecnologia: a fala, a linguagem. O aparecimento da linguagem no homem condicionou toda a história de seu formidável progresso em relação às demais espécies animais. Eis porque, para bem entender o alcance das mudanças civilizatórias, é preciso abordar, antes, a questão histórica fundamental do processamento da informação e da comunicação, por ser este o centro gerador de toda a mutação.”

Para compreendermos o que está acontecendo agora, na era digital, precisamos analisar os processos que já se repetiram ao longo da nossa evolução de alguma forma. Para isso, vamos dar uma passada rápida pelas seis etapas da linguagem que a humanidade vivenciou — civilização oral, civilização escrita, civilização impressa, cultura de massa, cultura de mídias e cultura digital (cibercultura).

Essas fases, que não são estanques, foram acontecendo de forma gradual e trouxeram impactos cumulativos. Cada momento novo se integra ao anterior, trazendo ajustes, e algumas características desses momentos desaparecem. Mas perceber cada momento histórico-cultural com a sua respectiva técnica de comunicação trará uma análise rica das recorrências e nos ajudará a compreender como estamos vivenciando isso na era digital.

A evolução da comunicação humana 

A linguagem dos símbolos e sinais
há 90 mil anos

Esse tipo de linguagem começou a ser usado muito antes dos nossos ancestrais primitivos andarem eretos: a comunicação era realizada por meio de ruídos e movimentos corpóreos que constituíam símbolos e sinais mutuamente entendidos.

Os hominídeos não falavam e se utilizavam de gestos, sons e alguns outros sinais padronizados, os quais eram passados às novas gerações para que se pudesse viver socialmente. O ritmo da troca de informações era lento e impreciso, gerando um lapso de tempo, em milhões de anos, de uma evolução cultural vagarosa.

Civilização Oral
há cerca de 35 e 40 mil anos

A fala possibilitou ao homem dar um salto no desenvolvimento humano, pois, por meio dela, foi possível transmitir mensagens complexas, contestar e contar histórias. O homem começou a incluir a arte em seu repertório a partir de pinturas rupestres e suas primeiras tentativas de armazenar informações e também fez uso dos benefícios do acúmulo de conhecimentos para se fixar em aldeias.

Civilização Escrita
– por volta de 4.000 aC

Cada sociedade criou uma forma particular de escrita, mas foram os sumérios que transformaram os sons em símbolos, pioneiros no uso de caracteres para representar sílabas, dando o primeiro passo para a escrita fonética. Mais tarde, fizeram uso de papiro, pedra e placas de argila para gravar mensagens, que eram carregadas por estafetas que percorriam quilômetros de distância para levar a informação ao seu destino.

Escrita pictográfica: desenhos que representam ideias;
Escrita fonética: símbolos que representam sons.

Por volta de 1200 a.C., os fenícios, grandes mercadores do mar, desenvolveram um alfabeto que foi muito utilizado por diversos povos da época e que teve papel essencial na popularização da escrita. De lá para cá, a escrita passou por um lento e longo processo de simplificação, mas foi só graças à evolução dessa tecnologia da linguagem que grandes movimentos da ciência, das artes, da administração e da religião foram possíveis.

Civilização Impressa
– a partir do séc. XV

Até o século XV, as pessoas reproduziam livros na Europa preparando manuscritos, reproduções dos livros existentes feitas à mão. O trabalho era imenso e, por isso, o número de livros era restrito, acessíveis somente a quem possuía muitos recursos

Tudo mudou em 1462, quando Johannes Gutenberg inventou um sistema com tipos móveis que permitia a reprodução mecânica da escrita e a reprodução sistemática de milhares de cópias de determinado livro. Considerada uma das invenções mais poderosas da humanidade, a imprensa de Gutenberg também permitiu que o processo de alfabetização avançasse e fez com que o conhecimento fosse divulgado em todos os níveis da sociedade.

A primeira publicação impressa foi a Bíblia de Gutenberg. Com a passagem dos manuscritos para impresso, o leitor teve acesso a teorias e conhecimentos que antes eram restritos aos mestres, trazendo um aspecto mais individual para as leituras e interpretações.

💡 Medo do novo
Gutenberg escolheu a Bíblia como primeiro projeto, pois temia que as pessoas julgassem suas reproduções como imitações baratas dos tão bem elaborados livros manuscritos. 

Cultura de Massa
– a partir do séc. XIX

O amplo acesso aos jornais pelas pessoas comuns e o surgimento de novas tecnologias como o telégrafo e o telefone no século XIX deram espaço para uma nova cultura, que fincou suas raízes no começo do século seguinte, com a invenção do cinema, do rádio e da televisão, as chamadas mídias de massa.

Com a capacidade de difundir informações simultaneamente para um grande número de pessoas, os meios de comunicação de massa tiveram grande influência em diversos cenários, com impactos na política, educação, economia e no convívio social.

Essas mudanças nos padrões das relações cotidianas de convivência e na perspectiva psicológica dos indivíduos já eram reconhecidas por cientistas no final do século XIX. Para o sociólogo norte-americano Charles Horton, esses veículos eram mais eficazes do que os processos de comunicação de qualquer sociedade anterior em termos de expressividade, permanência de registro, presteza e difusão.

Cultura digital
– atualmente

Estamos vivendo a era digital, um tempo marcado pela mudança radical dos paradigmas e a redefinição de muitos conceitos que foram tidos como absolutos. Há informação para todos os lados, com propagação em rapidez e agilidade nunca vistas; o cidadão comum consegue expressar suas opiniões e colher feedbacks com facilidade, enquanto interesses e objetivos comuns são compartilhados em todas as esferas, do campo afetivo ao político.

Esse novo momento vem recheado de novos desafios para a sociedade e, consequentemente, para o Direito, uma vez que novos fenômenos surgem em enorme volume, variedade e velocidade.

Como tudo isso tudo se relaciona com o Direito?

O encurtamento do tempo, causado pela velocidade da era digital, traz um momento bastante paradoxal para as Ciências Jurídicas: temos a rigidez e dogmatismo, que mantém as estruturas sólidas, em contraponto com a rapidez de novas tecnologias digitais e dos seus importantes efeitos, especialmente sobre institutos seculares que fazem parte da compreensão dos fenômenos jurídicos.

Os efeitos desses artefatos — aqui com foco nas tecnologias digitais que, sobretudo, não são neutras — deverão ser observados pelos Cientistas do Direito, os quais precisarão investigar os fenômenos de forma projetada e a longo prazo, ainda que este exercício seja desafiador. Juntamente com isso, esses fenômenos terão de ser contextualizados, mas sem isolá-los do fluxo e dos atores envolvidos em sua produção.

A bússola que nos orienta para a primeira mudança de lentes seria, portanto, iniciada pela compreensão de que a cada mudança das mídias de comunicação (aqui compreendidas como meios) são interruptores de grandes mudanças na civilização.

Ao mesmo tempo em que causaram rupturas na sociedade, essas mudanças trouxeram consigo grandes transformações. Isso nos ajuda a entender os motivos pelos quais a internet tem impactado tão profundamente nosso modo de viver, conhecer, se relacionar e resolver problemas.

A partir da ideia de vida interconectada, que se coloca em todas as nossas relações de direitos e deveres, o papel das tecnologias digitais e de informação já não é mais apenas ferramental: são forças ambientais que afetam cada vez mais quem somos, como socializamos, como percebemos a realidade e como interagimos com o contexto. E é papel do Direito estar atento a essas transformações sociais e tecnológicas e a todas as suas implicações éticas e jurídicas.

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*Movida pela conexão de saberes e pela inquietude, Silvia Piva é advogada, professora e fundadora da Nau d’Dês. É Doutora e Mestra em Direito pela PUC-SP e integra os times de pesquisadores da PUC-SP, FGV-SP e Instituto Legal Grounds.