Sílvia Piva*

Difíceis perguntas que têm surgido no Século XXI, em decorrência da rapidez com que as tecnologias emergem em nosso cotidiano e uma das mais importantes é sobre como as tecnologias estão transformando a forma como agimos, pensamos e percebemos o mundo. 

Desde muito tempo já se discute sobre a neutralidade ou não das tecnologias, se são meras ferramentas ou se somos afetados por elas, ainda que não sejam evidentes diretamente seus benefícios ou malefícios. Para nós, não só as tecnologias não são neutras, como já deixaram de ser ferramentas, para se transformarem em verdadeiras forças que nos moldam.

Somos tecnodependentes e, conforme Lucia Santaella, estamos em verdadeira simbiose com as tecnologias. Nossa vida “onlife”, como definida por Luciano Floridi, em Onlife Manifesto, é a nossa experiência da vida interconectada, na qual não faz mais sentido perguntar se estamos “on-line” ou “off-line”. Estamos, a todo  instante, “on-life”. 

A distinção entre realidade e virtualidade, para nós, é difusa, afinal, virtual e real não são oposições, mas complementares. Vivemos sob abundância de informações e mudamos a perspectiva binária para a complexa e distribuída pelas redes.

Como uma camada que se sobrepõe ao que já vivemos, tecnologias continuam a emergir em nosso contexto social, e muitas delas já vem chamando a atenção para a urgência de novos guias éticos e regulamentações jurídicas, uma vez que suas aplicações e consequências, além de não estarem totalmente claras, ainda não foram objeto de normatização. 

Dentro disso, as neurotecnologias têm sido alvo de recentes discussões sobre a necessidade particular de regulamentação de suas aplicações, que jogam luz sobre um campo ainda pouco explorado, mas que já ganhou status constitucional no Chile: os neurodireitos.

O que são neurotecnologias?

Neurotecnologias, segundo definição da Neurorigths Foundation é “qualquer tecnologia que registre ou interfira na atividade cerebral, especialmente na interface cérebro-computador”.

Diferentemente de outros tipos de tecnologias, as neurotecnologias interagem diretamente no cérebro humano. Trata-se de um termo abrangente para descrever um grande espectro de métodos, sistemas e instrumentos, que trazem conexão direta com o cérebro, cujas atividades possam ser registradas e influenciadas. 

Os recentes avanços em neurociência, alicerçados em tecnologias como a inteligência artificial, as neuroimagens, a neuroestimulação e as pesquisas de interface “brain-machine” evidenciam que cada vez essas técnicas podem ajudar a curar e prevenir várias doenças ligadas ao cérebro, mas também podem igualmente manipular e modificar nosso comportamento, nossas emoções, nossa percepção e nossas decisões.

Ao mesmo tempo em que essas tecnologias avançam rapidamente, as preocupações éticas quanto ao uso também crescem. Contextualmente, os neurodireitos avançaram a partir de novas disciplinas e subdisciplinas e do entrelaçamento com o campo de investigação da neuroética. A neuroética guarda sua relação com “o exame do é certo e errado, bom e ruim no tratamento, perfeição ou invasão indesejada e manipulação preocupante do cérebro humano”.

Um exemplo trazido em seus estudos por Rafael Yuste, neurocientista da Columbia University e um dos fundadores do Neurorights Foundation, é o caso de escolas primárias da China que exigem que alunos usem fones de ouvido para gravar seus níveis de concentração. Esses dados são armazenados pelo professor em um computador e compartilhados com os pais, sem o consentimento da criança. Outro exemplo é intenção manifestada por Elon Musk de realizar os primeiros testes em humanos do neuroimplante Neuralink, que pode ajudar pessoas com lesões na coluna, mas que também pretende conectar nossos cérebros diretamente à internet.

No Brasil, o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra (IIN-ELS) desenvolve, desde 2006, atividades de ensino, pesquisa e extensão em Macaíba/RN, com o intuito de formar e capacitar profissionais na pesquisa em neurociências e neuroengenharia, para linhas de pesquisa que vão desde a reabilitação, desenvolvimento de próteses e órteses, até a neurociência computacional, cognição e processamento de sinais biológicos.

As pesquisas são vastas e indicam que poderemos prever as intenções e escolhas de pessoas através da leitura de registros cerebrais, até implantes cerebrais se mostraram eficientes para transcrever pensamentos em texto.  

Neurodireitos: uma nova fronteira dos Direitos Humanos

Os neurodireitos são, em linhas gerais, definidos como “os princípios éticos, legais, sociais ou naturais de liberdade ou titularidade relacionados ao domínio cerebral e mental de uma pessoa; isto é, as regras normativas fundamentais para a proteção e preservação do cérebro e da mente humana”.

O termo foi cunhado por Sherrod Taylor no início da década de 1990, em Neuropsychology and Neurolawyers.  O autor analisa a colaboração de neuropsicólogos e advogados no sistema de justiça norte-americano, em litígios relacionados a acidentes e lesões cerebrais.

Rafael Yuste trata, portanto, de Novos Direitos Humanos para a Era da Neurotecnologia.  A partir da Neurorights Foundation, o pesquisador busca “promover a inovação, proteger os direitos humanos e garantir o desenvolvimento ético da neurotecnologia” e elenca cinco pontos principais, cuja preservação se faz necessária com o advento das neurotecnologias:

  1. O direito à identidade ou a capacidade de controlar tanto a integridade física quanto mental;
  2. O direito de agência ou de livre pensamento e livre-arbítrio para escolher suas próprias ações;
  3. O direito à privacidade mental ou à capacidade de manter os pensamentos protegidos contra qualquer tipo de divulgação;
  4. O direito à capacidade de garantir benefícios e melhorias sensoriais. de forma equânime, a toda a população, a fim de evitar novos abismos sociais;
  5. O direito à proteção contra vieses algorítmicos ou à capacidade de garantir que as tecnologias não insiram preconceitos.

Alinhado a essa perspectiva, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em dezembro de 2019, traçou nove princípios globais sobre as recomendações a respeito das inovações, de forma responsável, em neurotecnologia. São eles:

  1. Promover a inovação responsável;
  2. Priorizar a avaliação de segurança;
  3. Promover a inclusão;
  4. Promover a colaboração científica;
  5. Permitir a deliberação social;
  6. Habilitar a capacidade de supervisão e órgãos consultivos;
  7. Proteger dados cerebrais pessoais e outras informações;
  8. Promover culturas de administração e confiança nos setores público e privado;
  9. Antecipar e monitorar o uso não intencional e/ou uso indevido potencial.

Com base nas diretrizes trazidas por Yuste, o Chile foi o primeiro país a contemplar os neurodireitos em sua Constituição, prevendo que  “o desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviço das pessoas e será realizado com respeito à vida e à integridade física e mental. A lei regulará os requisitos, condições e restrições para seu uso em pessoas, e deve proteger especialmente a atividade cerebral, bem como as suas informações”. 

Guias éticos para garantir a privacidade mental e a agência humana

A inovação tecnológica, seja ela incremental e disruptiva, faz parte da essência da humanidade, porém, embora seja inerente à nossa sobrevivência, também pode trazer consequências indesejáveis e não previstas.

Poderíamos até pensar que muitos desses direitos já podem estar contemplados em nosso sistema constitucional e infraconstitucional vigente, a partir de uma interpretação mais ampla. Contudo, a proposta de trazer novos guias éticos funda-se no fato de que, anteriormente, algumas questões não foram necessárias em outras tecnologias: a privacidade mental e a agência humana.

Os cenários e a aplicação que, em algum momento da nossa existência, foram restritos à ficção científica, já estão diante de nós. Considerar que nossos direitos já estejam protegidos pode não levar em conta os novos cenários que teremos a partir do avanço e uso cada vez mais frequente das neurotecnologias. 

Novos guias éticos poderão, portanto, direcionar as pesquisas, a aplicação e o design de tecnologias para gerenciar efeitos positivos e negativos. Em todo debate de regulação e governança, há também outro porém: regulações muito rígidas ou feitas de forma precoce podem retirar o oxigênio necessário ao processo de inovação, mas deixar para depois pode ser tarde demais. 

Assim, a OCDE traz a recomendação de “inovação responsável” em seu documento principiológico, para indicar uma possibilidade de norteador para o avanço da governança de novas tecnologias.

A nossa provocação final, portanto, se coloca a partir de como o Direito caminhará para a proteção das novas controvérsias que emergirão nesses novos contextos, uma vez que diversas questões filosóficas, éticas e normativas precisarão ser refletidas e enfrentadas nos anos que se aproximam.

*Movida pela conexão de saberes e pela inquietude, Silvia Piva é advogada, professora e fundadora da Nau d’Dês. É Doutora e Mestra em Direito pela PUC-SP e integra os times de pesquisadores da PUC-SP, FGV-SP e Instituto Legal Grounds.

A versão completa deste artigo foi publicada originalmente na coluna Pensando a Lápis, do ConJur. Você pode ler aqui.