Iniciei meus estudos sobre o pensamento complexo com Humberto Mariotti e Cristina Zauhy a partir da leitura do livro destes mentores: O Desafio da Incerteza.

Me lembro o quanto cada trecho daquele livro me impactou. Eu estava em férias com a família, na Bahia, e buscava uma leitura tranquila, sob a sombra de um coqueiro, para me acolher no descanso da brisa baiana que somente aqueles que a conhecem sabem o quanto é maravilhosa. O meu engano foi acreditar que aquele livro me deixaria tranquila para o pleno gozo das minhas férias.

Ao mesmo tempo em que as reflexões daquele livro me trouxeram muitas respostas, não me trouxeram resposta alguma. Estive diante do primeiro paradoxo das minhas férias: navegar por aqueles mares de conhecimento que me inquietavam ou continuar sob a confortável sombra do coqueiro.

Posso dizer que aproveitei esses instantes paradoxais. Deixei a incerteza correr ao me colocar de frente com ela. Pois à incerteza, todos nós, humanos, estamos sujeitos. Comecei a viver mais o conectivo E, que lentamente me distanciava do OU.

Tomando o contato mais próximo com a complexidade, fui percebendo que não estudamos a complexidade. Nós passamos a vivenciá-la, a encará-la como um modo de vida. Com isso, abraçamos carinhosamente a incerteza. Pode ser que no início não seja assim, de forma tão carinhosa. As experiências nos mostram o quanto as incertezas podem nos doer. Ao mesmo tempo, percebemos que a previsibilidade pode ser igualmente devastadora (quem gostaria de saber o exato instante de morrer?). Da mesma forma que o evento morte é certo, temos que sempre conviver com a incerteza do “quando”. E isso, por si só, já deveria deixar nossa jornada estimulante.

Este é apenas um breve preâmbulo para comentar o motivo pelo qual comecei a olhar para o Direito de uma forma diferente. Na verdade, comecei olhar para o pensamento e o conhecimento a partir das lentes abertas e diversas da Complexidade.

Observar o Direito pela Complexidade propõe encarar, num primeiro instante, que a Ciência, qualquer que seja ela, é falível. O Direito, enquanto Ciência Social aplicada é falível como Ciência, porque a complexidade humana não pode se submeter a uma automatização de padrões metodológicos, a um modelo pré-definido.

O Direito, enquanto essência, busca, desde sempre, resolver conflitos. Conflitos que estão na intersecção (ainda, por assim dizer) das relações entre sujeitos de direito.

No entanto, o Direito superespecializado, sem um olhar antidisciplinar, muitas vezes deixa de olhar o Direito como essência. E observar o Direito a partir de uma visão antropológica já nos traz uma imensidão de possibilidades. Mas insistimos em olhar apenas para aquilo que nos importa. Nossa constante segmentação nos deixa cegos para aqueles problemas que acreditamos que não nos afetam.

Hoje todo o processo de conhecimento ocorre de forma segmentada. Ao longo da História, dividimos as frentes de conhecimento em tecnociências e humanidades, sem nos darmos conta da imensa área cinzenta entre elas. Essa divisão gerou novas subdivisões, e assim sucessivamente. Cada ramo de conhecimento traz suas superespecializações e muitos caminhos são cada vez mais opostos e não mais convergentes. As partes não mais formam o todo do conhecimento. As partes se tornaram apenas partes, segmentadas, sem sentido.

A compartimentalização não permite enxergar o todo complexo, o seu conteúdo em múltiplas dimensões. O diálogo comum tem dificuldade de dar as caras, porque hoje concordamos OU discordamos de algo.

Então, o que percebo é que conhecer o Direito pela Complexidade propõe a compreensão do ser humano a partir do diálogo com as demais Ciências, para buscar alternativas e encontrar caminhos para a solução de conflitos também complexos, ainda que a solução encontrada seja provisória. Aliás provisoriedade é mais um traço da complexidade: estará sempre junto de nós, pois todo o nosso conhecimento é também provisório.

A proposta, portanto, é que o ciclo de reflexão deverá ser constante e a religação dos saberes algo a ser perseguido.  O Direito, ao lidar com as relações de seres humanos complexos, deve ser, então ,flexível e aberto ao diálogo com outros saberes.

Até porque, acredito que o Direito que servirá a sociedade daqui em diante não pode se contentar só com a visão formalista e procedimental porque a perspectiva que uma civilização humana próspera tem de seus problemas (que sempre estarão presentes) não pode ser reduzida a isso.

Assim, apesar do Direito estar a serviço da sociedade e da proteção de suas relações e a despeito da necessidade de termos uma exigência monumental para a previsibilidade e estabilidade dessas mesmas relações, não podemos mais acreditar que a visão segmentada do Direito permitirá alcançar propostas desejáveis para a sociedade contemporânea.

Ao mesmo tempo, a compartimentalização do conhecimento jamais pode ser tida como um erro, pois a divisão em áreas especializadas de conhecimento permitiu que grandes contribuições para a ciência e para a resolução de problemas da humanidade fossem criadas.

Atualmente, no entanto, a visão segmentada do conhecimento tem nos trazido uma série de prejuízos. A superespecialização não é suficiente para dar conta da quantidade de novos problemas que a própria humanidade criou. Dividimos o todo do conhecimento e não o juntamos em momento algum. O Direito pelo olhar dividido, segmentado, não nos trará as respostas para questões importantes e fundamentais da continuidade do ser humano em sua grande odisseia.

O pensamento complexo, por sua vez, se afasta do reducionismo e do determinismo. Aceita as incertezas, a aleatoriedade, a desordem e isso abala nossas convicções sobre as certezas que tínhamos até então. Certezas que nos foram sendo colocadas pelas grandes narrativas que explicam a grande viagem do ser humano na terra.

Portanto, quando menciono que para entender a complexidade você tem de vivenciá-la, é por conta do aspecto de que, ao optar por esse modo de compreender e conhecer, nos afastamos das grandes narrativas que construíram a forma como lidamos com o conhecimento, com as crenças, paradigmas filosóficos e epistemológicos.

Nota-se, da mesma forma, que essas grandes narrativas que até então davam conta de explicar a vida humana e sua existência da Terra, estão colapsando.

As grandes narrativas que nos trouxeram até aqui não estão dando conta de explicar como conhecemos e como percebemos o mundo ao nosso redor.

Diversos autores que estudam a complexidade, colocam que um dos grandes problemas da humanidade é a percepção deficiente. Olhamos com pressa e superficialidade para qualquer coisa. Isso prejudica a atenção e gera percepções e experiências insuficientes e equivocadas (“Vamos falar rapidamente… Vamos expor rapidamente”).

A percepção deficiente nos coloca diante de uma incapacidade de conseguir elaborar novas ideias, sensações, entender e reelaborar valores e crenças, o que nos afeta em múltiplos aspectos de nossa vida. Seja na avaliação de situações que demandam ações rápidas, excesso de demandas, ausência de incentivos para se analisar detalhadamente uma questão. Criamos os nossos atalhos mentais, nossos processos decisivos pré-prontos, que geram conforto e sensação de coerência.

Então, deixamos que as recorrências – as coisas de sempre – o modo como fazemos tudo sempre igual – aliados às nossas experiências passadas, também contribuam para nossa crise de percepção.

Isso nos deixa expostos quando passamos a interagir cada vez mais com as máquinas. Se pensamos mecanicamente, se não nos damos conta dos nossos  “modelos” mentais que foram estabelecidos a partir da segmentação do conhecimento, não dialogaremos com novos pontos de vista e nossa crise de percepção se acentua demasiadamente.

Caminhando ao lado da crise de percepção, está o dilema dos limites do conhecimento humano. Sabemos que o nosso conhecimento tem um limite, mas com as tecnologias emergentes, o aprendizado de máquinas, podemos ter a percepção de que o conhecimento que emerge de aparatos tecnológicos pode ser melhor que o de seres humanos.

Então o dilema sobre os limites do nosso conhecimento deve nos acompanhar até que possamos estabilizar uma nova forma de compreender a consciência humana.

Uma proposta seria, então, assumir que somos seres complexos mas que nosso conhecimento e percepção são limitados. Ao sermos limitados, o avanço de processos de conhecimento ou de decisão a partir de algoritmos irá carregar todas as nossas limitações e poderá acentuá-las ainda mais.

Ao mesmo tempo os algoritmos, por trabalharem a linguagem humana a partir de códigos numéricos estruturados, trazem uma falsa percepção de exatidão.

A certeza matemática, o absoluto, faz com que tenhamos a percepção de que algoritmos devem estar mais certos do que nós humanos, que não trazem certezas em sua própria essência. Somos voláteis e imprevisíveis.

O que fica, no entanto, é que a certeza absoluta somente virá a partir da retirada do ser humano da equação da sociedade. Enquanto houver a presença humana em qualquer relação entre sujeitos ou entre sujeitos e máquinas, a incerteza deverá ser nossa companheira.

 

Sílvia Piva