Consequências para a sociedade e para os profissionais do Direito

 

A morte é considerada por muitos como o estágio futuro da nossa existência. E, talvez, essa certeza alimente o desejo do homem de eternizar-se, desde a construção das pirâmides do Egito e da criação dos diversos processos de mumificação, em tempos remotos, até o advento da fotografia, no século XVIII. Nessa busca pela inevitabilidade da morte, o ser humano buscou rituais e formas de permanecer lembrado.

Queremos marcar a nossa existência com a imagem de que “estive aqui”, “isso é o que sou” e “o que construí”, como forma de sobreviver a partir dessas memórias. Villém Flusser destacou em seu texto “A Imortalidade I”, “o único bicho que concebe a morte é o homem”, onde também destaca a importância para o ser humano na construção de cultos, rituais, moralidade, cultura e arte, especialmente para trazer a sobrevivência da memória sobre sua existência.

Enquanto ainda lidamos com a morte a partir da noção da consciência que iremos morrer, da morte biológica e do medo de esquecimento, temos o aumento da nossa percepção sobre como as tecnologias mudam a forma como nos relacionamos com o mundo, como modificam a nossa consciência e o modo como nos definimos enquanto seres humanos (acredito que, logo mais, nos perguntaremos: o que é ser humano diante das tecnologias emergentes?)

Mas se a morte permeia a existência humana desde sempre, será que poderemos, em breve, pensar uma ressignificação desta circunstância (sobre a morte), sobretudo a partir das tecnologias emergentes?

Um exemplo concreto desse fato é a recente patente registrada pela gigante Microsoft, que estuda a possibilidade de “reencarnar” as pessoas digitalmente, por meio de chatbots (programas de computadores que tentam simular um ser humano na conversação com as pessoas).  Emulando o comportamento da pessoa que se foi, poderá manter – de forma diferente, pois não é natural – o status relacional com alguém que não mais estará presente fisicamente, apenas digitalmente. Veja também essa matéria relacionada: https://olhardigital-com-br.cdn.ampproject.org/c/s/olhardigital.com.br/2021/01/20/noticias/jovem-russo-vira-bot-de-inteligencia-artificial-apos-a-morte/amp/).

Não tocaremos mais o corpo biológico de alguém que se foi, mas o status da relação poderá permanecer a partir de diálogos conduzidos e reproduzidos, a partir dos dados sociais desse indivíduo, como “imagens, voz, postagens em mídias sociais, mensagens eletrônicas e cartas escritas, que poderão ser utilizadas para construir um perfil”, conforme matéria veiculada no portal Época Negócios, no dia 7 de janeiro.

Poderemos, então, ter uma evolução do nosso corpo físico/biológico para um outro tipo de corpo: o conjunto de dados organizados em sistema, que poderão recombinar as formas de compreensão das relações humanas e também da morte, dentro desse contexto.

Pierre Levy, em sua obra O que é o Virtual, trata do virtual enquanto evolução, enquanto algo em potencial. A pergunta que se coloca frente ao contexto deste ensaio é inevitável: seremos evolução, após a instância física/biológica e a partir de nossa organização em dados, que se comunicam e continuam dando sentido à existência de outras pessoas?

Tecnologias como a registrada pela Microsoft acenam, então, para uma série de desdobramentos sobre a dimensão e percepção que temos sobre a morte, nos endereçando, possivelmente, para uma nova etapa: a morte enquanto evolução do corpo físico/biológico para uma instância digital, onde nossas lembranças serão mantidas e, talvez, até mesmo retroalimentadas pelos nossos dados sobre gostos, preferências e atitudes que tivemos enquanto nosso corpo físico/biológico estava ativo.

Além disso, teremos um novo dilema sobre o que é a consciência humana, de modo que poderemos ter múltiplos sentidos para conceituá-la (algo que não conseguimos até hoje).

Portanto, estamos aqui dando esse passeio especulativo mas o objetivo é trazer provocações que afetarão temas importantes, especialmente para profissionais jurídicos, os quais, se não forem amadurecidos num processo de trocas e reflexões sobre o assunto, correrão o risco de ficarem mal posicionados para um possível desdobramento de soluções.

De fato, tecnologias como a proposta pela Microsoft trazem reflexos no campo jurídico e também em diversas intersecções importantes do Direito, da Filosofia, Tecnoética, Antropologia e Psicologia.

Temos dedicado tempo em estudar e analisar aspectos importantes sobre a proteção de dados pessoais das novas tecnologias. Vejo, no entanto, que, além dessa frente, será cada dia mais importante o olhar do profissional jurídico para o acompanhamento do design ético de produtos, antes de chegarem às mãos dos usuários finais.

Nem sempre, porém, poderemos e conseguiremos prever todos os usos e consequências de certos avanços tecnológicos. Um produto que possa trazer dados e informações de pessoas já falecidas, além de impactos jurídicos como a proteção do legado digital e quem tem direito sobre ele, traz também um aspecto que extrapola a esfera jurídica e interfere nos postulados, crenças e valores da cultura humana. Tecnologias terão o poder de reconstruir narrativas e de dar explicações que podem modificar a nossa relação de existência, a partir de redes sistêmicas não humanas, e nos trazer questionamentos sobre nossa subjetividade e nossa concepção enquanto indivíduos. Com isso, podem surgir – o que não podemos afirmar hoje ser bom ou ruim – novas crenças, comportamentos e valores, a partir da dimensão de formas diferentes de consciência (humana e não humana).

Além dessas provocações, podemos trazer outras, com o objetivo de refletir a respeito: no mundo contemporâneo, de que outras maneiras o ser humano vai buscar eternizar-se?

A eternidade e as big techs talvez possam dar início a uma combinação rentável, a partir da  virtualização cada vez maior de todas as atividades humanas e das próprias pessoas.  Nas relações econômicas da sociedade contemporânea, qualquer empresa de base tecnológica poderá tentar desenvolver novos e eficientes produtos que ofereçam essa possibilidade. E estes serão comercializados aos que anseiam em se perpetuar, mesmo após a morte.

Partindo dessas especulações, podem surgir novos caminhos para a investigação na área do Direito, como por exemplo:

– Elaborar conhecimento jurídico e filosófico, em conjunto com o design ético de produtos dessa natureza;

– Como resguardar adequadamente dentro desse contexto o legado digital e os novos rastros de linguagem, produzidos após o evento morte física/biológica;

– Para a proposição de novas leis e conteúdos jurídico-acadêmicos que busquem legalizar e harmonizar essa relação, pois novas modalidades de “eternização” envolverão aspectos éticos, relacionados à proteção das informações daqueles que não estarão mais vivos biologicamente;

– Para definição sobre quem será responsável pelo gerenciamento dos dados e das consequências danosas, decorrentes de um mau uso de uma tecnologia como essa: como manipulação, propagação de fake News ou crimes digitais a partir do uso de informações ali armazenadas.

 

O fato é que a velocidade das mudanças sociais, econômicas e tecnológicas impostas pela era digital é diretamente proporcional à necessidade de mudanças urgentes no contexto legal e na forma de atuação do profissional da área jurídica, que, definitivamente, precisa tratar os conflitos de forma muito mais sistêmica daqui em diante, levando em consideração a interesecção com conhecimentos além do Direito.

 

Vamos, então, juntos, pensar sobre esses novos caminhos e trazer essas reflexões para dentro do Direito?

 

Por Sílvia Piva